Qual a sua história com a fotografia em preto e branco?

Hoje Cleu Nacif nos presenteia com uma linda história.

” Nós

Aqueles olhos me encantavam desde que nos conhecemos, desde a primeira foto que tirei dela, quando eu era só uma turista por ali.

Eles tinham um brilho forte impossível de passar despercebido.

Poucas vezes consegui enxergar suas pupilas, pois os cílios enormes e retos cobriam parte do olhar, marcando traços de sombra na pele enrugada.

Atrás dela, o pouco que conseguia aparecer do céu azul quase me cegava, com a luz forte do meio dia.

Aproveitei para me esconder do sol debaixo daquela montanha de pele e orelhas enormes.

Mesmo nos amando, eu precisava sempre manter a atenção, pois vez ou outra, ela fazia algum movimento brusco para se levantar ou para ajeitar a posição, e quase me esmagava com suas 2 toneladas de carne, gordura e afeto.

Agora, já adulta e com mais de 7 toneladas, o perigo era constante mas ficarmos distantes uma da outra era quase impossível.

No nosso convívio diário acabei desaprendendo um pouco a conviver com gente, porque um elefante consegue ser uma companhia muito divertida e sincera.

Isso quando eles querem, porque teimosia era o sobrenome da Gobabis, ou como eu a apelidei: Babis.

Aquele dia estava fervendo, meu suor escorria desenfreado pela testa.

Nem o abano constante das orelhas de Babis, que não paravam de bater um instante, servindo de ventilador (e de chuva de areia para meus olhos) estava ajudando.

Nossa rotina estava há muito estabelecida: depois do almoço – dela – a gente sentava debaixo de um baobá específico, mas não necessariamente na sombra, a escolha também era sempre dela.

Ela deitava primeiro e eu em seguida encostava em sua pele dura e então dividíamos alguma fruta, no caso, uma melancia.

Um pedaço para mim, o resto todo para ela. E ali ficávamos para a digestão.

Resgatada de um circo, suas cicatrizes depois de anos não doíam mais, mas penavam meus olhos.

Como alguém podia fazer aquilo com outro ser vivo… Bom, essa pergunta vinha de milênios, e eu estava longe de uma resposta.

Foi no meio de devaneios na tarde que ele reapareceu.

Vinha com seu estilo Indiana Jones, um charme no caminhar e aquele olhar na minha direção que me deixava bamba, constatando que nada havia mudado.

Só conseguiu chegar até metade do caminho.

Sabe como elefantes são…  Ciumentos e protetores.

Não sei se foi pelas lágrimas que eu já havia chorado em seu colo ou simplesmente pela segurança extrema no passo dele invadindo seu território, só sei que a Babis levantou de um pulo (ou quase, ellies não pulam), o suficiente para me jogar para o lado e acidentalmente quase pisar na minha perna.

Por sorte isso não aconteceu, mas teria acontecido pior se eu não tivesse a impedido.

Sim, meus 70 kgs tinham alguma influência naquelas 7 toneladas.

Pensando melhor, talvez eu não devesse tê-la impedido.

Do outro lado, um Alê não mais tão seguro e bastante pálido esperava pela chance de aproximação.

– Ela nunca gostou de mim… – disse ele irritado.

– Não posso culpá-la – respondi, enquanto passava minha mão na pele seca de Babis.

– Ela não vai me deixar ir até você.

Olhei para Babis que estava imóvel sem tirar os olhos dele.

Eu sabia que não devia fazer aquilo de novo, porém no fundo ainda acreditava nele e na vida nem tudo é preto no branco.

Ela em compensação sabia melhor que eu, e estava deixando claro.

Aproximei-me de sua tromba, tentando acalmá-la e depois de um beijo, me afastei na direção do Alê.

Ao cair da noite, pude ver pela janela que, a quase um quilômetro de distância, ela ainda estava lá, e passou a noite embaixo daquele baobá, olhando em direção a casa, enquanto eu passei a noite indo para a janela tentando achá-la no breu.

Nem a lua me ajudou, mas ao menos iluminou meu mural de fotos na parede.

Quase todas eram fotos de Babis, e todas em preto e branco.

Com os anos percebi que desenvolvi uma fascinação em fotografá-la em P&B, acho que porque a forma de seu corpo, as curvas de suas orelhas, o movimento de sua tromba ficavam sempre tão fortes e nítidos contra a claridade dos dias na África.

E a luz dos seus olhos, como eles brilhavam embaixo daqueles cílios grossos.

Era um contraste belíssimo de sombra e luz, da aridez daquela terra quando passávamos pelo período de seca e a fartura daquele corpo enorme, e das nossas vidas, antes e depois de nos conhecermos.

Tudo isso ali, naquelas fotografias que olhavam para mim enquanto o Alê dormia.

Eu voltei dois dias depois para debaixo do baobá, onde ela ainda me esperava.

Sua memória de elefante sabia bem demais dos meus passos.

Caminhei lentamente para que percebesse minha aproximação, e estendi minha mão com delicadeza, em busca de sua pele.

Ela deu um passo em minha direção, aceitando.

Mais uma vez, sua tromba limpou minhas lágrimas enquanto eu sentia seu cheiro de terra e seu calor por uns instantes, até que em um reflexo afastei meu rosto quando ela encostou na minha bochecha dolorida e inchada.


– A pergunta de milênios continua a ressoar, minha querida amiga.”

 

Créditos da foto: Cleu Nacif

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